COISA JULGADA MATERIAL NAS RELAÇÕES CONTINUATIVAS.
Por: Hélio Cimini.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS.
“A justiça é o pão do povo,
As vezes bastante, as vezes pouco,
As vezes de gosto bom, as vezes de gosto ruim,
Quando o pão é pouco, há fome. Quando o pão é ruim, há descontentamento.”
(Brecht)
Se de um lado a justiça ideal se mostra utópica em razão do próprio subjetivismo das partes nessa convicção, a justiça real é possível pelo Direito quando este passa a oferecer não a justiça no sentido utópico, mas tanto quanto possível, a segurança nas relações jurídicas. Proferida uma sentença, seja definitiva ou puramente terminativa, surge com os recursos a possibilidade de reexame da matéria julgada justamente para dar maior segurança jurídica nos casos levado ao conhecimento do judiciário.
Mas esgotados os prazos para recursos, em não sendo mais possível a interposição destes, a sentença se torna imutável, inadmissível ser atacada pela via recursal.Ocasião em que estaremos diante da coisa julgada.
Mas qual ponto da decisão que se torna imutável ? Seria seu conteúdo apenas ou o conteúdo e os efeitos da sentença? Seriam as relações jurídicas continuativas passíveis de coisa julgada material a contrário sensu de alguns dispositivos de lei.
Nesse artigo encontraremos o conceito da coisa julgada e sua natureza jurídica. Após, conceituaremos relação jurídica continuativa e a possibilidade de sobre estas incidir a coisa julgada material.
Por fim, e como justificativa até, sustentaremos que nada obstante o caráter sucessivo, as sentenças terminativas são passiveis de coisa julgada material, e que a mudança de seus efeitos não se opera no campo da relativização da coisa julgada pela clausula rebus sic standibus como sugere alguns doutrinadores, mas pelos próprios elementos identificadores da demanda.
2. CONCEITO DE COISA JULGADA.
A coisa julgada enquanto fenômeno processual opera nos casos de não possibilidade de interposição de recursos, seja pela preclusão (coisa julgada formal), seja pela interposição de todos os recursos cabíveis. De certo modo é até difícil a conceituação de coisa julgada, até mesmo porque o legislador não o fez de maneira satisfatória, confundindo-a, por vezes, com seus efeitos.
Todavia, em princípio podemos usar como conceito de coisa julgada o disposto no artigo 6º § 3º da LICC ao dizer “chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial que já não caiba mais recurso”.
Enrico Túlio Liebman, corifeu da escola processualista no Brasil definia coisa julgada enquanto “imutabilidade do comando emergente da sentença”, ao que não concordamos, uma vez que o comando emergente da sentença abrange também seus efeitos. Citamos como exemplo a decretação de um divórcio, sentença de natureza claramente constitutiva, cujo efeito é cessar o vínculo matrimonial. Uma vez transitada em julgada, se as partes, após, decidirem viver juntos novamente em união estável, desaparecidos estariam todos os efeitos daquela sentença “imutável”.
Conquanto a envergadura do processualista italiano, definitivamente não são os efeitos da sentença que se tornam imutáveis, mas o seu conteúdo. Ora! Se considerássemos imutáveis os efeitos da sentença, se considerarmos como efeitos, os comandos processuais capazes de influir no mundo externo do direito, inútil seria a vedação contida no artigo 472 do CPC em relação aos efeitos da sentença perante terceiros. Bastaria admitir que, se os efeitos da sentença são atingidos pela coisa julgada de modo a torna-la imutável, toda pessoa poderia ser usufruir da coisa julgada daquela relação inter partes. Ela se opera nos meandros dos elementos da ação; Partes, pedido e coisa de pedir.
Desde Liebman existe a divisão entre coisa julgada formal e coisa julgada material. Muito embora nosso ponto seja exclusivamente na coisa julgada que torna imutável o conteúdo da sentença e indiscutível – salvo nos casos de ação rescisória - o caso em qualquer outra ação, (coisa julgada material) não podemos deixar de mencionar a coisa julgada formal, como sendo aquela que impede a rediscussão da matéria naquele processo (endoprocessual), funcionando também como pressuposto lógico da coisa julgada material, eis que “só se torna possível uma sentença alcançar a autoridade da coisa julgada material se antes tiver alcançado a coisa julgada formal”
Coisa julgada seria portanto, a imutabilidade da sentença (formal) e de seu conteúdo (material), quando incabível quaisquer recursos.
Barbosa Moreira vem dizer que “a característica essencial da coisa julgada material se encontra na imutabilidade da sentença, que não se confunde com sua eficácia.” E se Liebman sustentava a coisa julgada como a qualidade que tornava imutável o conteúdo, o comando e até mesmo os efeitos da sentença, Barbosa Moreira diz ainda, pensamento no qual somos adeptos, que são justamente os efeitos da sentença que “escapam do selo da imutabilidade”
A imutabilidade da sentença é portanto, o efeito da coisa julgada material, que vincula os tribunais e juizes pela resolução contida no dispositivo da sentença, ora vinculação positiva que é justamente a aderência à sentença, ora de vinculação negativa que impede em regra, a rediscussão da matéria alcançada pela coisa julgada.
A ocorrência da coisa julgada tem papel preponderante no direito processual civil quando vai criar a segurança jurídica para aquela determinada ação . Tanto assim que o artigo 471 do CPC, ao dizer no caput que “nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo.” foi proposital, não fez menção à ação. Havendo identidade de ações resta defesa a propositura da segunda, eis que estaria ferindo a intangibilidade da coisa julgada do artigo 467, ao que deveria ser extinta a segunda por força do artigo 267, V do CPC.
Portanto, havendo mesma parte, causa de pedir e mesmo pedido, imutável será o conteúdo (dispositivo) da sentença.
O mesmo não vai ocorrer quando, conquanto a identidade da lide em relação ao bem da vida, houver diferença nos elementos essenciais e identificadores da ação, ou seja, diferente as partes, o pedido ou causa de pedir. Exemplo que salta aos olhos é o caso de ação de alimentos, que muito embora a mesma lide, as mesmas partes, diferente será o pedido ou a causa de pedir quando advier nova situação de fato.
De todo o exposto, não podemos ter como conceito puro e simples de coisa julgada o preceito no artigo 467 do CPC, haja vista a sustentação anterior de que a eficácia da sentença no mundo externo transcende em muito a imutabilidade desta no processo, razão pela qual melhor seria se o legislador tivesse excluído do artigo em comento a palavra “eficácia”, dizendo por coisa julgada a qualidade de imutável da sentença.
O uso do termo “eficácia” contribui para que da leitura do artigo nos pareça conter em si muito mais os efeitos que o conceito de coisa julgada.
Posto o conceito do que vem a ser coisa julgada, necessário fixar qual sua natureza jurídica.
3. NATUREZA JURÍDICA DA COISA JULGADA.
Duas são as posições doutrinárias sobre a natureza jurídica da coisa julgada. A primeira, que encontra apoio em Chiovenda, vai dizer que coisa julgada é um efeito da sentença. A segunda vem sustentar que a coisa julgada não seria exatamente um efeito da sentença, mas uma qualidade imanente desta, exatamente a qualidade de ser imutável pela escassez de recursos cabíveis.
Muito embora o artigo 467 do CPC possa em um primeiro momento parecer sugerir ser a coisa julgada o efeito da sentença, logo na sua segunda parte vem estabelecer da imutabilidade desta pela impossibilidade de recursos, o que viria a confirmar a natureza jurídica defendida pela segunda vertente doutrinária de que coisa julgada não seria os efeitos da sentença, mas uma qualidade desta.(Liebman)
Nesse mesmo entendimento, Alexandre Freitas Câmara esclarece que:
“é de se afirmar que a corrente doutrinária que defende ser a coisa julgada um efeito da sentença encontra-se equivocada. Isso porque, como ensina Barbosa Moreira, a imutabilidade de uma sentença não lhe é co-natural. Quer o ilustre processualista carioca, com essa afirmação, dizer que é possível afirmar a existência de sentenças que em nenhum momento se tornam imutáveis e indiscutíveis. A impossibilidade de modificação da sentença a qualquer tempo, com a previsão de um número limitado de recursos, todos sujeitos a prazos de interposição, e a conseqüente imutabilidade da sentença a partir do momento que a sentença se torne irrecorrível é uma opção de política legislativa, que surge pelo de o ordenamento ser voltado à preservação da segurança jurídica.”
De fato, não nos parece melhor a posição doutrinária que defende ser a coisa julgada pura e simplesmente um efeito da sentença, mas sim uma qualidade da sentença antes inexistente, criada por uma situação jurídica.
Noutra ponta, em relação à situação jurídica, existem vozes de escol na doutrina processual que diz ser esta a verdadeira natureza jurídica da coisa julgada, dentre estas, Machado Guimarães e Alexandre Câmara, posição da qual não fazemos parte.
No nosso singelo entendimento, essa situação jurídica é criada (também) exatamente a partir da qualidade de imutável da sentença não mais sujeita a recurso. Não seria, portanto uma natureza jurídica, mas como o próprio nome sugere, uma situação jurídica decorrente de características ínsitas da coisa julgada. A situação jurídica sim, poderia funcionar como efeito da sentença e não como natureza jurídica da coisa julgada, que se opera antes com a qualidade de imutabilidade.
Ademais, não podemos deixar de mencionar que enquanto situação jurídica, toda e qualquer sentença ostenta essa característica, mesmo aquelas sujeitas a recursos, razão porque melhor natureza da coisa julgada é mesmo aquela que vai dizer ser esta uma qualidade da sentença não mais sujeita a recursos.
Para tanto, Humberto Theodoro Junior ao dizer que:
“Enquanto sujeita a recurso, a sentença não passa de “uma situação jurídica”. Os efeitos próprios da sentença só ocorrerão no momento em que não mais seja suscetível de reforma por meio de recursos. Ocorrerá então o trânsito em julgado, tornando o decisório imutável e indiscutível.”
Podemos então afirmar que a natureza da coisa julgada é a qualidade da sentença que a torna imutável em relação a seu conteúdo, criando a partir daí a situação jurídica de segurança perseguida pelo processo no Estado Democrático de Direito.
4. RELAÇÃO JURÍDICA CONTINUATIVA E COISA JULGADA.
4.1 Relação jurídica continuativa.
Antes de falarmos aqui sobre a incidência da coisa julgada, impende demonstrar ainda que de modo bastante sucinto o que seria relação jurídica continuativa ou como preferem alguns relação jurídica continuada.
Relação jurídica continuativa, para usarmos os termos do CPC em seu artigo 471, I, é aquela que se protrai no tempo, sendo que a sentença dela derivada, fica adstrita à clausula rebus sic standibus, ou seja, afeta à teoria a imprevisão cujos efeitos se satisfazem enquanto duram as circunstâncias que originaram a sentença.
Nesse caso, uma vez que a sentença determinativa regula situações que se prolongam no tempo, fica desta forma vinculada aos acontecimentos futuros capazes de alterar a situação jurídica. Por exemplo, uma sentença condenatória de alimentos se perdura até o momento em que advir novas situações, seja por parte do alimentado seja por parte do alimentando. Se o pai demonstrar que já não é capaz de arcar com os alimentos iniciais em razão de mudança substancial em sua remuneração, estaremos diante de uma possibilidade de revisão do que fiou estabelecido naquela sentença.
Mas qual seria o fundamento da possibilidade de revisão dessa sentença? Seria ela capaz de atingir a coisa julgada material? Vejamos:
4.2 Coisa julgada material nas relações continuativas.
Em resposta, diante da necessidade de revisão do estabelecido na sentença é bem possível que alguns venham de fato dizer da impossibilidade de coisa julgada nas sentenças determinativas.
Fato é que, a despeito de texto legislativo (art. 15 da Lei de Alimentos) dizer não ser apta a sentença terminativa à coisa julgada, não andou bem o legislador ordinário, eis que inegável que em determinado momento restarão esgotadas as possibilidades recursais naquele processo de maneira a torna-lo imutável.
Nas lições de Alexandre Freitas Câmara, bastaria pensar na negação da coisa julgada formal nessas sentenças para que tivéssemos sempre execuções provisórias, tanto pior agora com a eficácia mandamental das sentenças cognitivas com o advento da Lei de Execuções no Processo Civil.
E no tocante à coisa julgada material que torna imutável o conteúdo da sentença, tanto possível e até conveniente, eis que os efeitos da sentença terminativa permanecem até o momento que não mude a situação que lhe deu origem. Possível portanto, a incidência da coisa julgada material para a segurança inclusive do réu, que em exemplo dos alimentos, se assim não fosse, poderia ser demandado em outra ação quantas vezes o mesmo autor achasse necessário e com a mesma causa e mesmo pedido.
Nelson Nery Junior vai dizer nesse aspecto o seguinte:
“A coisa julgada material se forma sobre a sentença de mérito, mesmo que contenha decisões sobre relações continuativas. Essa sentença “que aprecia um feito cujo suporte é constituído por relação dessa natureza, atende ao pressupostos do tempo em que foi proferida, sem, entretanto, extinguir a própria relação sujeita às variações de seus elementos.(...)Isso porque essa sentença traz ínsita a cláusula rebus sic standibus, de sorte que, modificadas as situações fáticas ou jurídicas sobre as quais se formou a anterior coisa julgada material, tem-se uma nova ação, isto é, com nova causa de pedir.”
E se já não há duvidas quanto a incidência da coisa julgada material nas relações continuativas, estas permeiam os fundamentos que vão autorizar a revisão.
Para os doutrinadores que entendem como fundamento da revisão a própria teoria da imprevisão, trata-se mesmo de uma “revisão” a partir do momento que vão buscar na cláusula rebus sic standibus o fundamento.
Humberto Theodoro Junior, adepto dessa teoria, chaga a afirmar que “desaparecida a situação jurídica abrangida pela sentença, a própria sentença tem que desaparecer também.”
Fundamenta-se o eminente processualista mineiro no artigo 471 do CPC, quando esse menciona a possibilidade de decidir a “mesma lide” em se tratando de relações jurídicas continuas. Contudo, em que pese a voz de escol, não confundamos nunca a lide com ação, e é justamente aqui que se afigura a solução do caso.
Uma vez que essa não é a nossa posição, a de que a revisão da situação se opere pelas vias da teoria da imprevisão, resta-nos expor nossos motivos, que também vão permitir uma revisão sem ferir a coisa julgada e ademais, sem lançar mão da clausula rebus sic standibus, que por sinal pode estar presente em todas as sentenças. E se presente em todas as sentenças, logicamente todas as sentenças poderiam, caso adotada a teoria acima, ser revistas.
Ora! Se a própria expressão “coisa julgada” nos permite um conceito daquilo que efetivamente foi julgado, e por essa razão aplicamos a teoria da tríplice identidade da demanda que foi julgada, ou seja, mesmas partes, mesma causa de pedir e mesmo pedido, de maneira a tornar impossível o julgamento da mesma demanda (ação) trazida em juízo, qualquer outra demanda que tenha diferenciado qualquer dos elementos da ação não é apta a produzir coisa julgada mesmo em se tratando da mesma situação.
Assim, ainda que idêntica a lide, se a situação que deu causa aos alimentos se modificar, qualquer rediscussão da matéria envolverá logicamente uma mudança na causa de pedir, pelo que teremos não uma mudança na sentença anterior, mas uma nova ação pela mesmo fato, ao que diferentemente será o dispositivo e o conteúdo da nova sentença.
Modificada a situação sobre a qual foi proferida, possível a interposição da nova ação, agora sim em razão da relação jurídica continuativa.
Por fim, se a sentença resolve a lide tornando-a em certo momento imutável (o conteúdo) e se a ação se identifica em sua tríplice identidade (partes, causa de pedir, e pedido), qualquer outra questão que não tenha cumulativamente esses três elementos, pode ser proposta novamente sem que haja relativização de coisa julgada.
5. CONCLUSÃO.
Qualquer verdade é posta em mesa quando outra lhe conflita pelos mesmos pontos de lógica. A ciência, é pois, tão mutável como a própria mente humana. É como se construíssemos prédios sobre pântanos que a qualquer movimento encontra-se no risco de desabar.
E se a segurança jurídica é um dos fins perseguidos pelo direito ao lado da justiça, sob os auspícios do Estado Democrático de Direito, nada mais consentâneo com os fins que a criação de mecanismos que lhe satisfaçam. Nesse aspecto, a coisa julgada funciona como válvula de contenção da eternização de ações, servindo assim, tanto à segurança como à justiça.
Serve à segurança jurídica a partir do momento que impede a propositura eternizada de ações (que decerto seria fator de crise) ao mesmo passo que serve à justiça quando, mesmo nas relações continuadas permite discussão sobre mesma lide na ocorrência de fatos não previstos que modificam substancialmente os efeitos da sentença. Não fere a coisa julgada material a interposição de nova ação sobre a mesma lide como equivocadamente sustentam vozes abalizadas da doutrina, uma vez que não há mesmo que se falar em coisa julgada quando da ocorrência de elementos diferentes na ação, seja a parte, a causa de pedir e o pedido.
6. REFERÊNCIAS.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. La definizione di cosa giudicata sostanziale nel códice di procedura civile braziliano, in Est. Tarzia, v. 2, n.9, p.988. Apud NERY
JUNIOR, Nelson. Código de processo civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 594.
CÂMARA. Alexandre de Freitas. Lições de direito processual civil. V.I. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2004. p.468.
NERY JUNIOR. Nelson. Código de processo civil interpretado. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 615.
SCHONKE, Adolf. Direito Processual Civil. Campinas: Romana, 2003, p.353.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. V.I. Rio de Janeiro: Forense, 1994,p.520.